terça-feira, 4 de janeiro de 2005

Há três dias a cidade chora como se lhe tivesse sido arrancado algo fundamental. E não há mais como recuperá-lo.
Há tempos não verto lágrimas por nenhuma razão. O choro ou tristeza deu lugar a uma raiva descabida, que esquenta as meninges de tanto que me esforço para conter esse ódio que pulula no peito e enche as veias de sangue quente, até as pontas dos dedos. É o momento exato em que as mãos se fecham e te dá aquela vontade de socar, esmurrar a primeira coisa que estiver na frente, seja ela inanimada ou então o nariz do primeiro infeliz que te dirigir a palavra.
Mas não; apesar de sentir minhas células se multiplicando desenfreadamente de tanta agonia por ter que conter tal fúria, por não poder disparar nem sequer umas míseras seqüências de potenciais de ação, devo conter este sentimento que faz tão parte de nós quanto qualquer outro, mas que a sociedade varreu para a gaveta das coisas indesejáveis no modo de ser humano.
Apesar de ser incontestavelmente a favor do diálogo, reconheço que em algumas situações, sair na porrada parece ser a melhor atitude a ser tomada, menos por achar que isso dará uma lição em alguém, mas mais para descarregar, ou melhor, dar vazão ao ímpeto de destruição que atropela qualquer senso de razão.
Vejam, neste momento estou aqui tentando reverter meus impulsos para o papel, queimando alguns neurônios me preocupando com acentuação e pontuação, gramática e conjugação, fazendo aquilo que tenta tornar cada vez mais distante o nosso lado animal: estou eu aqui sublimando, fazendo força para manter meu lado humano com o mínimo de dignidade e resignação, tolerância e paciência.
E quando nada mais funcionar...?
Mais um tapa na cara da realidade que levo nesta penúltima semana do mês de Outubro.
Durante um dos momentos da minha atividade laboral, que tinha por finalidade a produção de Raviólis de Queijo, o meu companheiro mais jovem da produção começa a relatar a "particular" atividade desenvolvida por um de seus amigos.
O tal rapaz possui uma chave que abre orelhões. Só com essa informação já é possível, logo de saída, pensar numa sacanagem bem interessante a se fazer, não é? Pois é, o que exatamente este cidadão fazia era abrir o aparelho e quebrar uma trava que faz com que os cartões caiam dentro do telefone. Depois, a pessoinha passava no caminho de volta recolhendo os cartões engolidos e os vendia na faculdade a preço reduzido e ganhava, assim, o dinheiro para o seu lanche. Não é engenhoso o criminoso? he...
A minha indignação fica menos por conta do espírito de porco deste garoto e mais por ter tido que ouvir as justificativas que meu companheiro de trabalho me dava para convencer-me de que seu amigo não estava cometendo uma grandessíssima sacanagem. Coisas do tipo: "ah, a pessoa que foi telefonar é que é burra, porque ela empurra tanto o cartão...", ...mas é para ele comprar o lanche... (como se as pessoas tivessem alguma coisa a ver com a larica do rapaz!)", e uma seqüência fabulosa de razões incoerentes colocadas de maneira tão naturalmente impensada que me fez perguntá-lo: Você está falando sério, você está só dando uma de teimoso, né?". E a resposta foi não, tão sincera quanto suas próprias razões em considerar uma barbaridade dessas algo normal, eu diria até, exemplar.
Essas situações me fazem pensar, até onde chegamos, e o que pode ser pior, até onde iremos chegar? Sinceramente: eu não quero estar aqui para ver.
"Deixar que os fatos sejam fatos naturalmente, sem que sejam forjados para acontecer
Deixar que os olhos vejam os pequenos detalhes lentamente
Deixar que as coisas que lhe circundam estejam sempre inertes, como móveis inofensivos
Para lhe servir quando for preciso sem lhe causar danos, sejam eles morais, físicos ou psicológicos."
Chico Science & Nação Zumbi – Corpo de Lama
Não sei se já comentei da relação de amor e ódio que sinto pelas telenovelas. Restrinjo-me aqui àquelas exibidas pela Rede Globo. Bem, dos males o menor, né, ou, tecnicamente falando, redução de danos.
As coisas que me fazem considerar gastar importantes horas da minha vida sentada na frente de um eletrodoméstico para ver novela alguma coisa que valha a pena, para dizer a verdade, não vêem acontecendo. Boas histórias, sendo desenvolvidas sem o uso de clichês e sem, o que parece impossível, estereótipos; atores de atuação verdadeira, dando ao personagem um frescor, uma espontaneidade, que realmente te passam a ilusão de estar participando da história, assim como acontece quando lemos um livro e vivemos com o herói todas as suas emoções; ausência de propagandas, que fazem o autor dar malabarismos e inventar situações totalmente despropositadas só para mostrar um maldito produto de alguma marca que fica recebendo falsos elogios dos personagens; casais com juras de amor piegas, frases feitas, nada de belas conquistas, troca de olhares, rostos ruborizados, inocência e paixão misturadas, muito mão naquilo, aquilo na mão, corpos e rostinhos bonitos mais valorizados que qualquer sentimento...
Reflexo do mundo medíocre em que vivemos, as novelas vendem sonhos que a grande maioria das pessoas não podem comprar e veiculam ideais e estilos de vida que nossas diferenças de classe social não nos permitem compartilhar. As novelas mostram nossas desigualdades quando divide seu elenco em núcleos: o rico, o pobre e a nebulosa, porém não menos importante, classe média. Em cada um brinca-se de bem e mal, cada um em seu lugar, à sua maneira, ou como a sua condição o permite ser.
As novelas são exatamente o que elas foram criadas para ser: uma projeção dos nossos tempos, dos nossos jeitos, das nossas opiniões; um duro retrato animado de cada uma das nossas mil faces.