terça-feira, 15 de junho de 2004

O Saramago é realmente um escritor fabuloso. Ele tem um poder descritivo inexplicável, emocionante até! Li "Memorial do Convento" e adorei, não só porque ele me foi um aconchego nos tempos de França, me ajudando a me reaproximar da Língua Portuguesa, mas gostei porque nunca tinha sentido o tipo de emoção que senti com a leitura, momentos de genialidade do autor.
Por me reavivar a genialidade de Saramago, quero postar um trecho de um livro dele publicado pelo Altieres e junto a gravura postada junto.

Trechos de MANUAL DE PINTURA E CALIGRAFIA
JOSÉ SARAMAGO - 1976

"... A pobre Adelina, como eu me divirto a chamar-lhe de mim para mim, é muito menos "pobre" do que eu disse: deita-se comigo, consente e exige que eu entre nela (essa virtuosa transposição resulta em obscenidade total, pois, literalmente, entrar eu nela significa que todo me reduzi a uma dimensão milimétrica, a qual me permitiria digressar [prefiria que se pudesse dizer digredir] no interior dela, ou, pelo contrário, que esse mesmo interior ganhou tamanho de catedral, basílica de S. Pedro, igreja de Notre-Dame, gruta dourada e verde de Aracena, por onde passeio [penetro] em meu natural tamanho, patinhando nos humoreses, nas secreções, repousando na turgidez das mucosas, e avançando sempre até o segredo do universo, ao laboratório dos ovários, ao estentor das trompas [mudas] de Falópio, respirando os cheiros primordiais da terra ali resguardados e em todos os sexos de mulher, agora já sem obcenidade, porque o sexo não é obceno, isto é uma coisa que sei hoje) e por causa desse entrar nela, e ela estar, sem verdadeiramente o querer a minha vontade, na vida geral em que eu tenho parte e ela parte, e ambos num rebordo comum, numa cimalha estreitíssima de Chartres, não posso dizer "pobre Adelina" nem esquecê-la. No interior dela derramo de cada vez milhões de espermatozóides de antemão condenados à morte, envolvidos num fluído gomoso que sai de mim arfando, e mesmo não a amando eu nem ela a mim, nenhum de nós escapa ao brevíssimo momento em que os corpos lassos e satisfeitos repousam, o meu, quase sempre sobre o dela, o dela às vezes sobre o meu, e também sobre o outro o um de nós que suporta o peso do outro. No fim do acto sexual (também chamado acto do amor), o corpo de baixo pesa sobre o de cima, e quem isto não descobriu nunca, não tem corpo nem sexo nem consciência de si. Duas vezes se exerce então a força da gravidade, não para se anular, mas para ser total o esmagamento. Porque a levitação dos corpos não é possível quando o sexo do homem ainda está profundamente ancorado no sexo da mulher, derramando ou tendo derramado a branca secreção dos testículos e banhando-se entre as paredes rubras ou róseas, e ardentes, ao mesmo tempo que a remotíssima tristeza do coito cobre de véus o cérebro e esboroa um a um os membros abandonados." (p. 55 e 56)



Edward Hopper - "Eleven Am" 1926

Entenderam o por quê?

Nenhum comentário: